O que o cozinheiro e produtor Rafa Bocaina e o sociólogo Carlos Alberto Dória têm em comum? Ambos são apaixonados pelo milho, sua história, possibilidades, variedades e a forma como marcou a história e a cultura do homem.  Desde o primeiro milho domesticado na região do Ria Balcãs, no México, passando pelo Acre, onde foi cultivado por índios guaranis, chegando ao século XIX, quando era considerado um alimento rico pelos povos andinos.  Sempre que há uma evolução civilizatória na história da humanidade, ali está o milho, seja por sua alta taxa de conversão ou por seu longo processo de domesticação, que a tornou completamente dependente da intervenção humana e a planta mais estudada do mundo.

Dória diz que o milho representa o Brasil como a mandioca. “Teve grande importância e influência na culinária caipira, que se formou no Sul de Minas, Vale do Paraíba e Vale do Rio Doce. Imagine que havia mais de 12 variedades de milho cultivadas pelos guaranis, que faziam de tudo com milho, como o pão de milho não maduro. Nós, paulistas, somos tributários diretos da cultura guarani”, conta o sociólogo, que escreveu o livro Formação da culinária brasileira, no qual investiga as raízes da nossa culinária. “A influência indígena está hoje ainda presente na alimentação das camadas populares da população brasileira, principalmente na forma da farinha de milho e de mandioca. Entre a elite, que sempre comeu de forma afrancesada, há ainda quem ache que comer com farinha de milho ou de mandioca seja ‘coisa de pobre’”.

No painel O Milho, na Edição de Inverno da Feira Viva, Dória e Rafa Bocaina, refletiram sobre esse complexo de vira-lata da culinária caipira, que durante muito tempo relegou o milho à condição de comida de pobre. “As pessoas tinham uma visão de pobreza quando falavam em culinária caipira, hoje esses valores estão mudando”, afirma Dória. “A unidade de produção básica da cozinha caipira é um sítio/casa, horta, pomar, forno fora da casa e uma fossa. Esse lugar se liga ao galinheiro, ao cerqueiro, ao chiqueiro. Isso tudo estava muito mais próximo da sustentabilidade do que podemos explicar”. Rafa completa: “nós, paulistas, temos dificuldade de entender a nossa cultura culinária. Não reconhecemos no milho um alimento e uma identidade”.

 

Mas se tem um alimento com identidade, com certeza é o milho. “Assim como a mandioca na Amazônia, no Sudeste o milho também era a base da alimentação dos guaranis. Havia mais de 12 variedades eu foram desaparecendo. O que sobrou hoje foi essa coisa industrializada, transgênica, essa cultura da mercadoria, que afasta as pessoas da agricultura”, lamenta Dória.

Mas nem tudo está perdido. Entusiasta das coisas da terra e da culinária caipira, Rafa Bocaina mostra que tradição não se perde. Disposto a retomar essa relação com seus antepassados e com a originação de sua produção gastronomica, Começou   a charcutaria artesanal em sua propriedade em Silveiras no Vale do Paraíba, com os porcos criados livremente pela fazenda. “Neste trabalho, tive contato com o milho vermelho da Bocaina, cultivado na Fazenda Coruputuba, no projeto agroflorestal do Patrick Assumpção de resgate e preservação de culturas agrícolas com relevância regional, e este milho, que fazia parte dos meus antepassados, me encantou como um tesouro gastronômico. Isso tem uma carga romântica, mas a realidade é que o milho mesmo é melhor e mais gostoso do que essas variedades comerciais que temos por aí. Foi transformador o meu contato com o milho vermelho da bocaina. De 20 sementes que eu ganhei do Patrick fiz a magia de multiplicar em algumas espigas. Aí, fui na Bocaina conversar com as pessoas sobre o alimento na mão e é mágico ver as pessoas se reconhecendo nesse milho. Então isso é tradição. Eu fui para a Bocaina para criar porco, mas encontrei no milho a ideia do que é resgatar uma coisa que se foi”.

Esse resgate esteve presente em cada garfada no leitão assado com angu insosso de milho vermelho da Bocaina que o Rafa preparou como prato representativo da culinária caipira, na Edição de Inverno da Feira Viva.

É, tradição não morre mesmo.


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